TEXTOS MEUS SOBRE DESENHO FEITO EM CADERNOS (O DIÁRIO GRÁFICO)
DESENHAR O TEMPO
(Texto introdutório do livro "Caderno da América Latina")
Estes 90 desenhos, apresentados integralmente, feitos em dupla página e em cadernos sensivelmente do tamanho deste livro, são uma parte muito limitada dos que fiz na viagem de cerca de nove meses entre a Cidade do México e São Paulo, no Brasil. Percorri 15 países onde dormi em 47 cidades e andei sempre de autocarro, salvo o percurso do Panamá para a Colômbia, que fiz de avião por as estradas serem pouco transitáveis.
(Introdução do livro "Caderno de Abrantes" editado com os desenhos realizados numa residência na cidade de Abrantes. O último parágrafo é repetido da exposição)
DESENHAR COMO UM ALPINISTA E UM CAÇADOR
DESENHAR O TEMPO
(Texto introdutório do livro "Caderno da América Latina")
Estes 90 desenhos, apresentados integralmente, feitos em dupla página e em cadernos sensivelmente do tamanho deste livro, são uma parte muito limitada dos que fiz na viagem de cerca de nove meses entre a Cidade do México e São Paulo, no Brasil. Percorri 15 países onde dormi em 47 cidades e andei sempre de autocarro, salvo o percurso do Panamá para a Colômbia, que fiz de avião por as estradas serem pouco transitáveis.
Gosto de relacionar o desenhar com o viajar. Ambas as actividades
precisam de tempo e de curiosidade. O desenho não capta o momento, capta o
tempo que demoramos a fazê-lo. Enquanto desenhamos estamos despertos (curiosos)
para tudo o que se passa à nossa volta e tentamos incluir, fazendo uma
selecção, o que observamos, o que sentimos, o que nos emocionou. Nem sempre o
conseguimos só com o desenho e, por isso, recorremos muitas vezes à escrita ou
à colagem.
Cada desenho é um desafio que nos impomos a nós próprios. É como uma
performance onde não há espectadores.
É um risco sem rede mas onde também não há erro. Os erros não são defeitos, são
o resultado nas nossas hesitações, das opções que fizemos durante o tempo que
demorou a fazer o desenho.
Cada desenho conta uma história, umas felizes outras nem tanto. São
histórias diferentes para o autor, quem o fez, ou para um observador. São
histórias que não estão explícitas no desenho mas que ficam gravadas na memória
do autor (algumas delas estão depois dos desenhos). O livro abre com um desenho
da cidade de Pasto na Colômbia. Esse desenho, feito no cruzamento caótico da
rua que ia ter ao meu hotel, conta-me a triste história dos cadernos roubados,
a história dos desenhos que foram feitos e que estarão algures. Em Bogotá há
uma Biblioteca com a maior colecção de Diários de Viagem da América Latina. É
lá que os meus devem estar.
A PRAÇA QUE PODE SER VÁRIAS COISAS
(Texto para a revista Sábado. A acompanhar um desenho feito em Berlim. 21 Abril 2016)
Saímos de uma rua estreita e, ao longe, do
outro lado da rua, não se percebia muito bem o que estávamos a ver. Vamos lá
ver o que é?! Aproximámo-nos, chegamos, começamos a andar por entre aqueles
paralelepípedos de pedra. Uns baixos como campas, outros, um pouco mais altos
como bancos, onde havia grupos de pessoas, umas sentadas outras em pé, a
conversar, a namorar, ou até a fazer um pic-nic. Andámos mais um bocado e havia
outros ainda mais altos, mais altos que nós. E eram como ruas. Uma nova cidade.
Labiríntica, claustrofóbica, até opressora, onde tínhamos a sensação de nos
perder ou de nos acontecer alguma coisa. Virámos uma esquina e eram outra vez
como campas. Um enorme cemitério a perder de vista.
Caderno Flecha, comprado na Papelaria
Fernandes. 11,5x17 cm
Aguarela e caneta preta
Monumento ao Holocausto. Berlim
AQUELA ESQUINA NO SOHO
(Texto para a revista Sábado. A acompanhar um
desenho feito em Londres. 14 Abril 2016)
Já não sei porquê, mas sei que estávamos com
pressa. Ela até continuou a andar, devagar, para me dar tempo. Mas eu tinha que
fazer aquele desenho. Uma esquina do Soho, um prédio em tijolo com um pub em baixo. Londres era aquilo, e os Clash
(só não os consegui ver em Cascais porque os bilhetes estavam esgotados). O
desenho foi tão rápido que nem aparecem pessoas. E o Pub, esse, nem sei o nome.
Sei que estava lá, que me apeteceu entrar, sentar-me ao balcão, dar dois dedos
de conversa com o barman. Enfim, fazer o que os londrinos do Soho fazem ao fim
da tarde. O desenho tem destas coisas. Enquanto o fazemos imaginamos coisas e
depois, passados uns anos, misturamos tudo: o que aconteceu e o que nós
gostávamos que tivesse acontecido.
Caderno formato A6 de capa dura preta marca Winsor&Newton
Caneta preta e aguarela
Esquina da Charlotte com Windmill street.
Bairro do Soho. Londres
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ESTARMOS ATENTOS AO QUE
NOS RODEIA
Quando me convidaram para desenhar esta
cidade, Abrantes, cidade onde nunca tinha estado mais que umas horas, pensei:
“Será que conhecem os meus desenhos? Que sabem que tipo de desenho faço?
Saberão que os meus registos não são completamente fidedignos ao observado?...”
Sabiam e a liberdade era total.
Precisamos de tempo para nos identificarmos
com uma cidade, para sabermos o que essa cidade tem para nos dar, para
percebermos as suas fragilidades, as suas subtilezas, os seus tesouros. E as
pessoas que as habitam. E eu tive esse tempo. Tive tempo para calcorrear as
ruas, olhar para cima, ver quem estava à janela, entrar no café, observar quem
lá estava, sentar-me no jardim e perceber o movimento nas várias horas do dia.
E o desenho é o registo por excelência. É o registo que, apesar da sua falta de
objectividade, melhor nos consegue transmitir essa realidade. A realidade que o
desenhador observou e guardou na memória.
E o desenho feito em
cadernos, ou pelo menos como eu o entendo, é um
registo rápido, um apontamento, uma recordação de um momento fugaz. Por ser um
caderno, um objecto transportável, permite-nos observar em qualquer lugar e
circunstância. Não queremos “postais ilustrados”, queremos estar lá, no meio
das pessoas, queremos observar tudo de perto, estarmos atentos ao que nos
rodeia enquanto desenhamos: os animais que passam, a música que sai da janela,
o cheiro da cozinha do restaurante. E, por ser um caderno, um
objecto pessoal que só mostramos a quem quisermos, não
estamos preocupados com o erro, dá-nos confiança e uma imensa sensação de
liberdade.
Eduardo
Salavisa
Fevereiro
2016
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O TEMPO QUE DEMORAMOS A FAZER
(Texto publicado no livro “Santa Luzia-Olhares
Plurais” Confraria de Santa Luzia. Viana do Castelo 2015)
O tempo que demoramos
a fazer. A quantidade de vezes que olhamos. O tempo em que estamos
concentrados. O fazer e o refazer. O fazer por cima. O fazer a linha e depois a
mancha. Ou primeiro a mancha e depois a linha. Isto tudo faz com que o desenho
seja uma actividade de outros tempos. Outros tempos, quando as pessoas viajavam
acompanhadas por um caderno e um lápis, e registavam o que lhes aprouvesse.
Outros tempos em que o tempo era outro. É preciso tempo para desenhar e, neste
tempo em que não há tempo, este tipo de registo é doutros tempos. Um desenho,
feito durante um tempo de concentração, activa-nos as emoções vividas naquele
momento e as suas memórias guardam-se eternamente.
Aquela semana que
passei em Viana do Castelo, com idas diárias
ao Monte de Santa Luzia, é uma memória grata que guardo para sempre. Uma
memória pessoal que não é a mesma que outro observador terá. Esse outro
observador terá outras memórias, tão gratas certamente como as minhas.
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CARTAS
DA AMÉRICA LATINA
(Texto
escrito para a exposição “Cartas da América Latina” na galeria Dínamo10 em
Viana do Castelo. 2015)
Desenhos
em papel
Uma
carta e um diário de viagem têm muitas coisas em comum, uma delas é serem privadas e do foro íntimo. Não se
mostram, não se expõem. Mas existe uma grande diferença: Enquanto o conteúdo do
diário não se partilha, o da carta é partilhado por duas pessoas. Quem a
escreve e quem a recebe.
Estas
cartas que eu mostro, escritas numa viagem da Cidade do México a S.Paulo com
passagem pela Patagónia, são cobertas por camadas uniformes de tinta. São
resquícios das cartas que são memórias dessa viagem.
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O
DIÁRIO GRÁFICO. ESTAR ATENTO AO QUE NOS RODEIA
(Escrito
para a exposição na Biblioteca Municipal António Botto em Abrantes. 2015)
O desenho feito em cadernos, ou pelo menos como eu o entendo, é
um registo rápido, um apontamento, uma recordação de um momento fugaz. Por ser
um caderno, um objecto transportável, permite-nos observar em qualquer lugar e
circunstância. Não queremos “postais ilustrados”, queremos estar lá, no meio
das pessoas, queremos observar tudo de perto, estarmos atentos ao que nos rodeia
enquanto desenhamos: os animais que passam, a música que sai da janela, o
cheiro da cozinha do restaurante. E, por ser um caderno, um objecto pessoal que só mostramos a
quem quisermos, não estamos preocupados com o erro,
dá-nos confiança e uma imensa sensação de liberdade.
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DA INUTILIDADE DESTES DESENHOS DE
VIAGEM
(Texto introdutório do livro “Diários
de Viagem2. Desenhadores-Viajantes” 2014)
As viagens servem para o que nós
quisermos que sirvam. Podem ter um carácter educativo. Veja-se o “Grand Tour” destinado à formação dos
jovens aristocratas, primeiro, e depois dos jovens burgueses, que viajavam pela
Europa Clássica com maior ou menor comitiva, dependendo do seu estatuto socioeconómico.
Por vezes fazia parte dela um pintor mas o jovem viajante, ele próprio, também
desenhava e o suporte para o fazer era, naturalmente, um caderno.
Era também nesta altura que os artistas
românticos, não só os pintores mas também os escritores, procuravam, primeiro
nas civilizações clássicas e depois no “Oriente”, a inspiração para as suas
obras. O chamado “Oriente” era afinal o desconhecido, o que era diferente da
Europa. Mais tarde o desconhecido foi o Japão, depois a África e a seguir a
civilização Pré-Colombiana.
As viagens também podem ter o intuito
de melhorar a saúde. Quando as populações dos países frios, a Norte, procuram o
clima mais ameno, a Sul, onde passam longas temporadas em termas.
E, logo que as condições
económico-políticas o permitiram, floresceu o negocio do turismo, muito ajudado
pelos avanços técnicos dos meios de transporte. Organizam-se breves viagens em
grupo a locais até aquela altura só acessíveis a muito pouca gente. Instala-se
o turismo de massas. Todos podem ir a todo o lado, pelo menos teoricamente.
É por isso que Paul Bowles no seu
excelente ensaio “O Desafio da Identidade”[1],
escrito por curiosidade em Lisboa, refere que já não interessa que os livros de
viagem descrevam o local, mas qual o efeito que o local teve sobre o viajante.
“O
que me interessava era a vivência do momento. Essas coisas que contas aos
amigos, como algo pessoal”[2].
Cada viagem é única e cada pessoa sente-a de uma maneira peculiar, diferente de
todas as outras. O desenho, como a nossa atenção, é selectivo. Focamo-nos em
poucas coisas de cada vez. “…sou atraída
pelo pormenor, as pessoas, as situações, as histórias, …”[3]. E
as páginas do caderno enchem-se de todo o tipo de registos gráficos, os
desenhos e as palavras. Anotações do que nos chama a atenção. Sem atender nem à
escala, nem à profundidade do espaço. Registamos o que está próximo e o que vemos
lá ao longe. O que ouvimos da conversa ao nosso lado e da frase solta de um
casal que passa. Tentamos explicar situações que não entendemos. Fazemos
diagramas para simplificar. Anotamos e colamos informações que possivelmente nunca
mais nos serão úteis.
Em viagem estamos com o grau máximo de
receptividade. Estamos disponíveis a receber o máximo de informação. É o
contrario de estarmos “cegos” na nossa cidade, onde a rotina faz com que já não
achemos nada interessante.
Este registo pessoal, feito de
observação no próprio local, faz com que os desenhos transpareçam isso mesmo:
que o desenhador estava lá, que fazia parte da cena. “A posição do desenhador deve ser totalmente fundida com aquilo (o
sítio) onde está ... Não é espectador mas sim autor, cenário e a própria peça”[4].
Sentado ou em pé, confortavelmente ou em posição precária, o desenhador não é
um mero observador. É um receptáculo de informação, de experiências,
transformando-as em símbolos, em grafismos, em linhas e manchas que, por sua
vez, comunicam com o observado. E, assim, é como se fizéssemos parte daquele
lugar, de não sermos estranhos naquela comunidade, que também temos uma tarefa
a fazer: “Gosto que seja trabalho. Ter um
fim deixa-nos alerta”[5].
“O
desenho em viagem ... é uma excelente câmara de longa exposição, captando
muitas coisas que acontecem em paralelo ou em sucessão no mesmo local”[6].
Por muito rápido que sejamos a registar um determinado
momento o factor tempo é o que distingue o desenho de outras actividades de
registo. O tempo em que estamos a fazê-lo. O tempo em que acontecem coisas à
nossa volta: quem passa, a nuvem que tapa o sol e muda a nossa percepção de ver
as coisas, o carro que nos obriga a desviar, o cão que ladra raivosamente. Esse
tempo em que estamos concentrados nessa tarefa. Esse tempo em que “Todos os sentidos devem estar envolvidos
... como se fosse possível saborear,
ouvir, cheirar, tactear aquilo que se vê enquanto se desenha”[7].
Mesmo quando o desenho é um simples
gesto (vejam-se os desenhos de Miquel Barceló) há toda uma preparação por
detrás: concentração, observação, análise, selecção. E o gesto é a síntese. É a
parte visível de todo o processo intelectual.
Esse tempo é tão intenso que nos fica
gravado na memória. “Paro tudo, sento-me
com o que me rodeia e registo. Não penso em mais nada. Asseguro-me de que no
papel fica uma memória, mais perene do que outras”[8].
Não só o tempo que demoramos a fazê-lo como todas as emoções, objectivas e
subjectivas, que contextualizam o desenho. Sem dúvida que aquele desenho tem um
significado muito mais abrangente para o desenhador que para um posterior
observador. Abro aqui um parênteses para dizer que não acredito que algum
registo, seja desenho, texto, fotografia, filme, som, ou o que seja, faça jus
ao que se representa. Nada iguala ou consegue transmitir o momento de quem
usufrui a experiência. É caso para dizer que o produto final, o desenho, é
irrelevante se compararmos com o processo que o fez aparecer. Ou, dito de outro
modo, a visão daquele desenho faz despoletar uma série de emoções que muitas
vezes já estavam esquecidas. Independentemente da sua qualidade ou semelhança
com o objecto representado.
Ainda relativamente ao tempo no acto de
desenhar “Um aspecto que me parece muito interessante é o seguinte: começo a
desenhar algo, logo deixo porque aconteceu alguma novidade. Mais tarde com uma
pena faço mais marcas. Noutro momento faço pequenos detalhes. De maneira que o
desenho pode demorar dias”[9].
Esta particularidade faz com que o desenho seja um somatório de momentos, de
emoções, de memórias.
“O
tempo do desenho dá largas à ficção ... Enquanto a casa se foi construindo no
caderno, fui fazendo a minha história”[10]. Pois. Aquele tempo é propício à divagação.
Misturamos a realidade com a ficção. Quando contamos uma história não estamos a
fantasiar um pouco? Bruce Chatwin, o grande contador de viagens, dizia, mais ou
menos, isto: “A realidade é uma maçada”. Ao contrário Italo Calvino no livro
“As Cidades Invisíveis”, onde descreve cidades fantásticas, identificam-se
partes de cidades reais. Quando estamos a desenhar o nosso pensamento voa. E
porque não registá-lo no caderno?
Mas, se há elementos que caracterizam objectivamente
os desenhos de viagem, são aqueles que representam intrinsecamente motivos
relacionados com viagens como, por exemplo, meios de transporte, locais onde se
esperam e apanham esses transportes, vias de acesso. “Já é um costume meu desenhar no avião. Primeiro para não me aborrecer
e depois para marcar a transição de um sítio para o outro”[11].
Lapin aponta dois fortes motivos: para combater o tédio nas longas esperas e
para marcar etapas e relembrar que os desenhos intermédios são de uma viagem.
Por vezes a colagem de um bilhete também cumpre bem essa informação.
“Os
cadernos introduzem na minha percepção de viagem um princípio de narratividade
que era menos óbvia anteriormente”[12].
O caderno constituído por folhas presas num dos lados obriga o observador a
observá-lo em sequência, numa determinada ordem, uma depois da outra. A
folheá-lo como se fosse um livro. E a importância de cada desenho dilui-se no
seu conjunto. Os desenhos de viagem ganham importância integrados naquele
caderno: “... as suas páginas sucedem-se,
em continuidade ou em ruptura, mas sempre em relação mútua”[13].
Podemos dizer que cada desenho é o contrário do “bilhete postal”, das
representações ex-libris dos locais
que visitamos.
E, se há artistas que realizam o
caderno com o fito de serem publicados, não é o caso dos autores deste livro ou,
pelo menos, não tinham essa percepção durante a viagem que descrevem. Muitos
deles referem que esse facto, de “serem
para consumo próprio”[14],
os desinibe, torna os desenhos mais interessantes, traduzem melhor aquele local,
as memórias são mais fortes, interiorizam aquela experiência com mais
intensidade. “Se há coisa libertadora nas
páginas do meu caderno é a sua inutilidade”[15]
[13] Rui Mário
Gonçalves in “Fernando Lemos. Isto é Isto”. Edição Fundação Arpad-Vieira, Edp e
Assírio&Alvim
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VIAGEM À PATAGÓNIA (CHILE. ARGENTINA)
(Texto escrito, como um dos autores,
para o livro “Diários de Viagem 2. Desenhadores-Viajantes” 2014)
A senhora dona Betty estava à minha
espera. Já ao telefone tinha percebido que tinha uma certa idade. E era muito
simpática. Tenho o hábito de desenhar a vista dos quartos de hotel onde fico
hospedado. Nem sempre é possível, ou nem sempre a vista o justifica. Não era
este o caso, puxei do caderno e fiz logo o primeiro desenho daquela cidade.
Depois, com o escantilhão que tinha comprado no México, escrevi “Puerto Montt”. Percebi logo que a cidade
tinha começado por ser uma pequena vila de pescadores com as suas casas de
madeira e agora, com a indústria do salmão na última década, tinha “evoluído”
para uns prédios altos e um centro comercial numa escala despropositada.
Figura 1
Nas viagens de noite não consigo dormir
muito. Tinha saído de Santiago pelas 20h05 e chegado às 9 horas da manhã. A
dona Betty teve a gentileza de me servir o pequeno-almoço e ainda dormi um bom
bocado. A rua em frente à Hospedagem Betty era muito inclinada e por vezes o
passeio era até em escada. Desci a rua em direção ao mar e fui almoçar. Um
almoço tradicional e barato: uma espécie de sopa com massa, feijão, cenoura,
milho, ervilhas e chouriço. À beira mar há uma escultura que amplia o que se
passa à volta. Dois adolescentes sentados, abraçados, a olhar o horizonte. A
cores naturais mas numa escala muitíssimo grande. Um pouco insólito.
Puerto
Montt é a porta de entrada para a Patagónia. Daqui para sul o
território é constituído por uma série de ilhas. Uma breve viagem de 4 horas
leva-nos até ao primeiro conjunto, o arquipélago de Chiloé, cuja capital é
Castro. Os transportes públicos, usados com frequência pelos habitantes locais,
funcionam muito bem e uma bem organizada empresa de pequenos autocarros, uma
rede de estradas e pequenos ferries permitem visitar facilmente as cidades
noutras ilhas. Os jesuítas investiram aqui muito do seu trabalho e, neste caso,
ainda bem. Todas as cidades tinham uma pequena igreja de madeira semelhantes na
tipologia mas diferentes na cor. Foi muito agradável cada dia apanhar um
pequeno autocarro a partir de Castro até uma das cidades. Cidades com nomes
como: Achao, Dalcahue, Ancud, Chacao
ou Chonchi. Em todas elas desenhei a
igreja e depois, numa casa de chá muito acolhedora e sempre com donas muito
simpáticas, pintava-as de memória.
Figura 2. Igreja de Dalcahue. No primeiro desenho, maior, não consegui
registar a proporção da torre em relação ao corpo da igreja. Decidi desenhar no
espaço que restava da folha uma proporção mais correta
Castro tem também a sua igreja. Neste
caso uma Catedral. E é dum amarelo forte
com telhado violeta. Parece tirada dum filme da Disney mas com as cores ainda a serem mais puxadas pelo photoshop. E os bairros limítrofes, como
o Palafitos Gamboa, à beira do rio, têm as casas suportadas por estacas.
Figura 3
As árvores em Bariloche estão vestidas
com uma malha de lã até parecendo que é por causa do frio. Encontrei depois em
Buenos Aires também árvores vestidas à porta de um museu para condizer com as
obras em exposição no seu interior. Dizem que a fronteira entre o Chile e a
Argentina, aqui na zona dos lagos, é a mais simples de transpor. E assim foi.
Além do percurso ser lindo, rápido (oito horas já não é nada) foi muito fácil
atravessar a fronteira. No dia seguinte fui ao parque Llao-Llao a trinta minutos de autocarro do centro de Bariloche. O nome
Llao-Llao, dado pelos Mapuches, é o nome dum fruto doce que é
habitual na zona. Estava tudo coberto de neve. Demos com este parque natural
por acaso e fizemos um trilho inesperado e inesquecível.
Figura 4. A meio do percurso, por entre troncos e ramos, que nos
obrigavam a passar por cima ou a baixarmo-nos, fomos ter ao lago Moreno
Cheguei a El Calafate extenuado depois
de vinte e sete horas de viagem. Quem visita o Perito Moreno, o maior glaciar
móvel do mundo, tem que parar em El Calafate. O hotel era muito confortável e,
a chover lá fora, só apetecia lá estar e lá jantar. Raviolis de espinafres com
frango num refogado de cenoura, cebola, alho francês e tomate. Era a chamada “comida
de disco”, nome da forma do tacho e que o gerente do restaurante, rapaz muito
simpático que não me lembro o nome, convenceu-me a experimentar e ainda bem
porque foi uma refeição muito reconfortante.
Figura 5. Os desenhos fazem com que recordemos os momentos. No caso de
desenho de comida quase que vem água à boca
O único passageiro do autocarro para o
Perito Moreno era um argentino simpático mas de poucas falas o que, neste caso,
foi preferível a um de muitas falas, pois permitiu-me sentar à frente e concentrar-me
no caminho. São oitenta quilómetros feitos em cerca de uma hora e meia cheios
de curvas e contracurvas com neve nas bermas e uns Andes sempre à espreita. Fiz
vários pequenos desenhos com o cenário a mudar constantemente.
Figura 6.
O Perito Moreno é um imenso bloco de gelo
com cinco quilómetros de frente, doze de profundidade e uns seiscentos metros
de altura. Um barco perto é traduzido por um pequeno ponto. Quando nos
aproximamos parece uma onda gigante ou qualquer coisa estranha que não se
percebe o que é. No caminho ia a pensar como poderia desenhar o gelo branco e
transparente mas, inesperadamente, tive uma surpresa: o gelo é de um azul
intenso. Então foi mais fácil, mas nenhum desenho consegue dar uma leve ideia
do impressionante que aquilo é.
Figura 7
Com paragem de uma noite na cidade de Rio Gallegos, depois de uma entrada e
saída do Chile e a travessia do Estreito de Magalhães, cheguei à “Tierra del Fuego” e, já noite, a Ushuaia, a cidade mais a sul do planeta
e onde os dias são muito curtos. Até aos anos cinquenta a sua principal função
foi a de penitenciária, agora é, principalmente, uma estância de desportos de
inverno. As suas ruas íngremes vão dar ao Canal Beagle onde atracam cargueiros, barcos de passeio e de pesca. Num
passeio pelo Canal podemos ver colónias
de lobos marinhos a espreguiçarem-se e a porem-se a jeito para serem desenhadas
em várias posições.
Figuras 8 e 9
Depois de uma breve estadia em Punta Arenas só para estar com um amigo
que anda, com a sua namorada, a viajar numa carrinha “pão de forma”, e de
passar mais uma noite em Rio Gallegos
para recolher a mochila maior que tinha lá ficado rumei a Puerto Madryn. Tive a sorte ao chegar de ser a época em que as
baleias passam por lá para acasalarem. E podemos observá-las aos pares, da
praia ou ainda melhor do pontão de embarque, nos seus rituais de acasalamento.
São enormes e tão graciosas ao mesmo tempo.
Figura 10. O desenho demora tempo a fazer, e durante esse tempo, mesmo
que seja um desenho rápido, passa-se muita coisa. Neste, passaram gaivotas,
posaram junto de mim, e as baleias lá continuavam no que parecia um jogo
Cadernos “Laloran” de
capa dura (10,5 cm x 15,5 cm)
Materiais: caneta e
aguarela
__________________________________________________________________________DESENHAR COMO UM ALPINISTA E UM CAÇADOR
(Texto
introdutório da revista da Ordem dos Arquitectos da região centro “Papel Parede. Riscar a Arquitectura” 2012)
Começo por citar, já que estamos
num espaço de arquitetura, dois arquitetos, desenhadores compulsivos e
portadores habituais de cadernos. Álvaro Siza Vieira: “Nenhum desenho me dá tanto prazer como estes – desenhos de viagem”
e “por mim gosto (...) de passear ao acaso,
sem mapa e com uma absurda sensação de descobridor” e Le Corbusier que
chamava aos seus cadernos “Cadernos de
Procura Paciente”.
As frases anteriores são por si
só um Programa completo. O facto de desenharmos porque gostamos faz com que o
tempo que levamos a observar o nosso “objecto de desejo” seja um tempo de puro
prazer. Mesmo que as condições não sejam as melhores, de pé, ao sol, com
pessoas a importunar, se conseguirmos suplantar essas dificuldades as
memórias acabam por serem muito gratificantes. O mesmo, penso, que o alpinista
sente quando chega ao cume.
O desenho requer tempo e
paciência. Com outra analogia posso comparar com o caçador que espreita a sua
presa. Nós captamos imagens, procuramos o melhor enquadramento, pacientemente
esperamos pela passagem de personagens ou de acontecimentos particulares.
E a sensação de “descobridor“, que
Siza fala, não é tão absurda quanto isso porque, por meio da nossa observação e
do consequente registo gráfico, estamos realmente a descobrir a cidade que nos
propomos visitar. E, mais uma vez, aconteceu isso em Tomar e no Convento de
Cristo.
Se a atividade do Desenho,
gratificante per se, exige, e eu
entendo que sim, um raciocínio tão
sofisticado como resolver um problema de outro tipo, como construir um texto ou
resolver uma equação matemática, deparámos no Convento de Cristo com uma grande
exigência. Mas quanto maior é a exigência maior a recompensa. E é gratificante verificar
a diversidade de soluções apresentadas.
No Centro Histórico de Tomar
fomos “descobrir” os recantos, pormenores, personagens, espaços e tudo o que
houvesse para descobrir nessa viagem. E como as viagens foram diferentes de
viajante para viajante!
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BENFICA E O DIÁRIO GRÁFICO
(Texto escrito para o catálogo da exposição
“Diários Gráficos em Benfica” 2012)
Nós somos aqueles que desenham, senão todos os
dias, pelo menos com muita frequência. Com qualquer material e nas mais
variadas circunstâncias. Sendo, no entanto, o suporte que usamos comum: todos
nós desenhamos num caderno. No chamado Diário Gráfico. Ou, se for em viagem,
pode ser chamado de Diário de Viagem. E, é aqui que vale a pena insistir,
podemos transformar o nosso quotidiano numa viagem. E o nosso quotidiano é no
nosso bairro, que neste caso é Benfica. Benfica tornou-se o objecto da nossa
observação e foi registado nos nossos cadernos. Cada observador traduziu o que
viu de sua maneira. São memórias inesquecíveis (passe a redundância) para o
próprio e é uma variedade de tipos de registo para os observadores desta
exposição.
Esta, a exposição, também pode ser um bom
incentivo para as pessoas começarem a ser (ou continuarem a ser), mais
observadoras das coisas que as rodeiam, das coisas vulgares do dia-a-dia, às
quais, por vezes, não lhes damos o devido valor. E da observação ao registo é
um pequeno passo que vale a pena dar. Ficamos a desenhar melhor e, porque não
dizê-lo, mais felizes.
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VIAJAR COM O DIÁRIO GRÁFICO
(Texto
escrito para o congresso “Arte&Viagem” na Faculdade Nova de Lisboa. Editado
no livro “Arte&Viagem” coordenado por Margarida Acciaiuoli e Ana Duarte
Rodrigues, Instituto de História de Arte. Estudos de Arte Contemporânea. 2012)
Viajar com uma única companhia: um
caderno. Um caderno de folhas lisas e capa dura. Além do material inerente:
algumas canetas, uma caixa de aguarelas e os respectivos pincéis. Coisa pouca,
que caiba nos bolsos ou, quanto muito, numa pequena mochila.
Começo por definir o que entendemos por
viagem: Viagem como o tempo que demoramos entre um ponto e outro ponto. Assim,
quando falo de viagem estou a falar de quando temos disponibilidade para
observar e refletir sobre o que nos rodeia, e essa disponibilidade exige tempo.
Desta maneira, a viagem pode ser na nossa própria cidade, no nosso bairro ou
mesmo na nossa casa, desde que tenhamos tempo para observar.
E por definir o que é, para nós, um
Diário Gráfico: um pequeno caderno, transportável, que serve de suporte a
apontamentos escritos, elementos e imagens pré-impressas coladas e sobretudo a
registos gráficos, desenhos portanto. Sejam eles de observação ou outros. O arquiteto
e pintor Le Corbusier chamava-lhes, a estes cadernos, “Cadernos de Procura
Paciente”. De observação e reflexão com tempo.
O tempo é muito importante, e é
inevitável, na atividade do desenho. E faz com que seja o factor de distinção
de outras atividades de registo, como a fotografia por exemplo. Nestes
cadernos, o tempo que se leva a fazer um desenho é o que mais nos interessa.
Mais que o resultado final é o processo, o fazer, que é mais aliciante. E, por
isso, e também pela concentração que a execução de um desenho exige, aquela
experiência é interiorizada com intensidade e fica na nossa memória de uma
maneira total, ou seja, fica com todos os sentidos. E até aqueles que não são
desenháveis: os cheiros e os sons.
As próprias características formais
deste objecto, do caderno, ditam as suas qualidades e são a razão de ele se
transformar facilmente num objecto tão importante para quem tem o hábito de o
transportar e de o usar. Desde logo pelo facto de possuir uma capa. Dura para
ser usada em qualquer circunstância e em qualquer lugar. Essa capa faz com que
o caderno se transforme numa espécie de caixa, onde guardamos coisas preciosas,
que não estão à mercê de qualquer pessoa e que nós só mostramos a quem
quisermos. Isso faz com que os nossos registos, escritos ou desenhados, tenham
um carácter muito pessoal e sejam realizados sem qualquer inibição.
Figura
1. Diário de Frida Kahlo. Caderno de 170 páginas realizado
durante os últimos dez anos de vida. Não o fez com intenção de o mostrar a
outras pessoas e muito menos de o publicar. É um bom exemplo de um “diário
íntimo”. Última imagem do diário e provavelmente o seu último desenho. Ilustra
a sua partida, a sua própria morte.
É por isto, também, que muitos
professores usam este tipo de caderno como instrumento pedagógico com os seus
alunos.
Esse facto, do caderno não ser
acessível a qualquer pessoa, faz também com que seja um espaço de reflexão, de
experimentação, em suma, de liberdade. É uma espécie de laboratório estético. E
nessa atividade de experimentação, de ensaio, é natural que apareça o erro, a
tentativa mal sucedida. E aquele diário que é um pouco como a nossa própria
vida que tem dias bons e dias maus, tem também ele páginas mais conseguidas que
outras.
Figura
2. Diário de Pablo Picasso. Caderno feito em Sorgues, pequena
povoação francesa. Está repleto de estudos e notas que revelam a pesquisa que
estava em curso. Na sua ideia ele pretendia “encontrar os meios não-ilusionistas de representar as coisas.”[1]
Por outro lado o caderno é de um
tamanho transportável. E, assim, transforma-se no que podemos chamar de
“laboratório portátil”. Qualquer lugar e qualquer circunstância é propício a
ser usado.
Figura
3. Diário de Fernando Lemos intitulado, pelo próprio, “Isto é
Isto”, e realizado entre 2007 e 2008
“Com
o seu formato de livro de bolso, é fácil de transportar quotidianamente.
Colocável na mesinha-de-cabeceira, pode ser utilizado antes de dormir e logo ao
acordar; abre-se num café, na paragem de autocarro, na sala de espera do
consultório médico, em tantos outros locais e momentos pouco controláveis.”[1]
Aliado ao facto de ter uma capa que
resguarda e um tamanho transportável, o caderno é constituído por um conjunto
de folhas, presas por um dos lados, o que faz com que não se possa trocar a sua
ordem. E o estarem em sequência realça a sua ideia diarística de uma
intervenção regular, dia após dia, traduzindo um tempo de vida do autor, de um
percurso, de um conjunto de experiências ou de situações que acontecem ao longo
de um tempo determinado – de uma viagem.
As cidades onde vivemos, e onde
passamos quotidianamente, tendem a transformar-se em “invisíveis”, deixamos de
reparar nos seu pormenores, nas suas estórias banais, nas suas personagens
vulgares. E termos o hábito de transportar um caderno e registar graficamente o
que observamos, transforma-nos em pessoas mais observadoras e o quotidiano
transforma-se numa cidade desconhecida, como se tivéssemos a explorá-la pela
primeira vez ficando possuídos por “uma
absurda sensação de descobridores.”[2] Ou
seja, o nosso quotidiano transforma-se numa viagem.
Figura
4. Diário de Eduardo Salavisa. Uma vista de Lisboa, cidade
onde vive e trabalha. O Porto de cruzeiros em frente à estação de Santa
Apolónia.
Bibliografia
COLOMBO, Jorge, New York. Finger
Paintings, Chronicle Books. S.Francisco. 2012
GONÇALVES, Rui Mário, Isto é Isto, de Fernando Lemos
LÉAL, Brigitte,
Carnets. Catalogue des dessins, Musée
Picasso, vol. 1. Reunion des Musées Nationaux. Paris. 1996
LEMOS,
Fernando, Isto é Isto, Fundação Arpad
Szenes/Assírio&Alvim. Lisboa 2010
LOWE, Sarah M., El Diario de Frida Kahlo, un íntimo autorretrato, Círculo de
Leitores, Madrid, 1995
SALAVISA, Eduardo, Diários de Viagem, desenhos do quotidiano, Quimera, Lisboa 2008
SIZA, Álvaro, Álvaro Siza, Esquissos do Douro, ICEP,
Figueirinhas, Lisboa, 1999
[1] GONÇALVES, Rui
Mário, introdução no livro fac-simile do caderno de Fernando Lemos intitulado Isto é Isto, Fundação Arpad Szenes/Assírio&Alvim. Lisboa
2010. Pág. 11
[1] LÉAL, Brigitte,
Carnets. Catalogue des dessins, Musée
Picasso, vol. 1. Reunion des Musées Nationaux. Paris. 1996. Pág.195
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A MINHA PRIMEIRA NOITE EM BUENOS AIRES
(Texto publicado na
revista “The Printed Blog. Portugal” Agosto 2011)
Chegar a uma cidade
sem nenhuma referência especial é uma experiência. Quando cheguei ao aeroporto
de Buenos Aires apanhei um táxi e disse: “Para o hotel Lisboa, por favor”.
Tinha escolhido este hotel pelo seu médio preço, pela sua situação central (mesmo
ao pé da praça de Maio, conhecida pelas reuniões às quintas-feiras das mães de
desaparecidos no tempo da ditadura) e pelo nome. Por esta ordem. Estes
requisitos, além de uma casa de banho só para mim, bastavam-me. Perguntei à senhora
da recepção o porquê do nome. Não me soube responder. O duche ocupava toda a
casa de banho, o que era estranho, mas que rapidamente me habituei. E tinha o
que, a partir dessa altura, não prescindo quando viajo em climas quentes: uma
grande ventoinha no tecto. Além de uma pequena varanda e uma ainda mais pequena
mesa. Na varanda estava preso o anúncio fluorescente do nome do hotel o que
fazia com que uma fraca luz vermelha, intermitente, me enchesse o quarto. Na
mesa passava alguns dos melhores momentos: a finalizar os desenhos que tinha
feito nesse dia, acrescentando cor, pormenores, coisas coladas e a escrever
sobre o que tinha desenhado e sobre o que não tinha conseguido desenhar. Gosto
muito deste trabalho quando viajo. É um trabalho de memória em que se revive o
quotidiano.
Andar pelas ruas sem
nada nas mãos, só com um pequeno caderno que cabe no bolso das calças e duas
canetas, uma grossa e outra mais fina, dá-nos uma sensação próxima do que se
pode chamar liberdade. E aproxima-nos do comum das pessoas. Parece que
pertencemos àquela comunidade, que temos também uma tarefa a desempenhar, que
temos um quotidiano. É curioso como gosto de pensar no meu quotidiano como uma
viagem e o contrário: de transformar a viagem num quotidiano. Comprar o jornal
local, tomar um café no sítio mais próximo, dar dois dedos de conversa com o
empregado e apanhar o autocarro. No fim do dia, na nossa secretária, rever o
que fizemos e acrescentar algumas memórias.
O momento de chegar a
uma cidade desconhecida, pousar a bagagem no quarto do hotel, e sairmos munidos
unicamente do caderno e da caneta e com os sentidos todos despertos, é um
momento único. O bairro onde estava alojado, em Buenos Aires, talvez o
equivalente à nossa Baixa lisboeta, estava naturalmente deserta. Era domingo.
Uma cidade deserta pode ser particularmente deprimente. E ainda mais depois de
uma viagem de avião de mais de doze horas. Fui andando até que, de repente,
deparei com a avenida Corrientes. Que faz jus à sua celebridade, pois está
repleta de cafés, grandes e pequenos, livrarias, teatros e um mar de gente.
Nessa noite, a primeira passada em Buenos Aires, foi difícil adormecer, pois
sabia que ia ter muito para ver … e desenhar.
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DIÁRIO DE
VIAGEM em CABO VERDE
(Texto
escrito para a introdução do livro “Diário de Viagem em Cabo Verde 2011)
Sempre que
pude fiz as viagens entre as ilhas de barco. Nessas viagens, quase sempre
longas, ocupava-as a observar, a desenhar o que observava e também a pensar
para que raio é que fazia aqueles desenhos. Foi numa dessas viagens, a maior,
de 24 horas, da cidade da Praia até ao Mindelo, que escrevi no caderno (página
57): “Este conjunto de desenhos vale exactamente como um conjunto. São fruto de
algumas observações, vivências, experiências ou simplesmente de quem não tem
mais nada para fazer. São, quase exclusivamente, registos muito rápidos, feitos
em más condições. Não pretendem registar coisas ou lugares importantes, nem os
mais significativos de cada lugar. Por vezes esses locais paradigmáticos
aparecem, mas é por coincidência. O seu conjunto não pretende ser uma
reportagem ou uma descrição do que se passou na viagem. São registos pessoais
que acabam por ter relevância, a maior parte das vezes, só para o próprio”.
Estes
desenhos foram feitos durante nove semanas onde visitei as nove ilhas
(habitadas) que constituem o arquipélago de Cabo-Verde. Este livro não pretende
ser um verdadeiro facsimile[1].
É uma selecção de cerca de um quarto dos desenhos feitos durante essa viagem.
No entanto cada dupla página é integral (menos o número da página, que foi
colocado para melhor identificação na legenda), com todos os erros e hesitações
que este tipo de caderno contém, além de que estão dispostos cronologicamente.
Todos eles foram feitos a caneta, no local, num registo rápido e mais tarde
coloridos com aguarela. É também nesta altura, quando faço uma revisão do dia,
que escrevo a maior parte das coisas. Outras são escritas no próprio sítio.
Quando se
faz este tipo de desenho, de acontecimentos efémeros, que se estão a passar à
nossa frente, mas que rapidamente podem deixar de estar, é preciso uma grande
concentração e de nos envolvermos totalmente. É talvez por isso que quando,
mais tarde, voltamos aos cadernos e aos seus desenhos, é como se retornássemos
àquele tempo e todos os sentidos ficassem despertos. Todos os desenhos que
constituem as páginas deste livro me recordam de uma maneira muito intensa os
momentos que passei.
Na primeira
guarda do livro está o mapa de Cabo-Verde, que desenhei nos últimos dias, com o
percurso da minha viagem. Na segunda guarda estão algumas das pessoas que
encontrei pelo caminho e que, apesar de nunca mais as ter reencontrado, guardo
uma espécie de amizade. Faltam algumas pessoas, que não as desenhei, mas que
foram muito importantes. Algumas são referidas nas legendas. Nestas legendas
estão primeiro transcritas o que escrevi no caderno durante a viagem. São
impressões do momento, notas sem importância, muitas das vezes pouco rigorosas
ou informações várias. A seguir vem algum pensamento que me ocorre, agora,
quando olho para as imagens. Alguns destes pensamentos já foram editados no
blog http://diario-grafico.blogspot.com (desenhador do quotidiano).
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TEXTO
PARA O CATÁLOGO DE EXPOSIÇÃO “CIDADE D’ESCRITA”. CM DE SANTIAGO DO CACÉM 2011
Tenho para mim que quanto mais
desenhamos, melhor o fazemos. Quanto mais tivermos o hábito de transportar um
caderno, que podemos chamar de Diário Gráfico, mais ficamos com o hábito de
olhar, de observar, de perceber as coisas. E de as registar.
Estes registos não
servem para nada e servem para tudo. É por isso que este caderno, o
Diário Gráfico, se
transforma num objecto indispensável.
Este meu interesse pelo desenho,
especificamente feito em cadernos, recomeçou quando me deparei com o seguinte
problema: “como transmitir a outros o conhecimento de saber desenhar?”. Cheguei
à conclusão que a melhor maneira, se não a única, é transmitir o gosto pela
actividade de desenhar. E este gosto é transmitido se nós transformarmos o
dia-a-dia numa viagem. E esta transformação acontece se registarmos, num
pequeno caderno, as pequenas coisas que nos vão acontecendo. Ao longo do dia,
nos percursos que costumamos fazer na nossa cidade, ou em cidades estranhas,
registamos as pequenas coisas ou os grandes monumentos, e são memórias que
nunca mais esquecemos. E como na vida nem tudo corre bem, também no caderno há
páginas menos conseguidas. Mas é o nosso caderno, que se transforma num pedaço
da nossa vida.
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(Texto escrito para a exposição “Diários de
Viagem: representações gráficas de África” no âmbito do 7ºCongresso Ibérico de
Estudos Africanos no ISCTE-IUL-Biblioteca e Centro de Estudos Africanos. 2010)
Estes cadernos, que
alguns têm o hábito de transportar consigo para todo o lado, servem para o que
se quiser e denominam-se como se quiser. Há quem lhes chame “laboratório
portátil” quando são usados para experimentar materiais ou modos de registo. O
arquitecto Le Corbusier chamava-lhes “cadernos de procura paciente”,
relacionando o acto de desenhar com a observação. No meio artístico e também
académico chamam-lhes “diários gráficos”, atribuindo importância ao registo
diário e regular. O que nos interessa agora, aqui, nesta exposição, é a
denominação “diário de viagem”, quando este caderno é usado nas várias
deambulações onde temos uma grande disponibilidade para fixarmos as
experiências que uma viagem proporciona. Entendemo-lo como um suporte com
algumas particularidades. De dimensões transportáveis, os seus desenhos
pressupõem que sejam o resultado de um percurso ou um conjunto de experiências
ou situações que aconteceram ao longo de um tempo determinado: de uma viagem. O
que faz com que a importância de cada desenho dependa da série em que está
integrado, ou seja, do conjunto de desenhos que constituem o caderno. A ideia
de diário também influi no tipo de registo. É uma intervenção regular, dia após
dia, mas, por ser um caderno, permite voltar atrás, refazer alguma página,
acrescentar-lhe alguma informação, colar algo. É um produto sempre inacabado.
Os registos feitos nos cadernos podem ser desenhos, anotações escritas,
esquemas, colagens (de fotografias ou outro tipo de imagem impressa) e qualquer
outro tipo de técnica.
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4 CADERNOS DE UM DESENHADOR-VIAJANTE
(Texto publicado na Revista LER de Setembro
2010)
Música desesperada em Buenos Aires
Segundo li algures, Borges dizia que a Calle
Rivadavia, a mais comprida rua de Buenos Aires, se divide em duas partes
distintas: a proletária e a burguesa. Não foi por isso, mas aluguei um quarto
num hotel dessa rua, que abandonei passado pouco tempo. Não tinha luz natural e
gosto de quartos onde me posso recolher pela tarde, na hora do calor, e pintar
a aguarela os desenhos que fiz, na rua, a caneta.
Que a música, o tango, paira sobre a capital
argentina, é verdade. Eu ouvi. Aos domingos, no bairro San Telmo, Praça
Dorrego, instalavam-se os feirantes e os músicos. A minha banda preferida era a
Orquestra Típica Fernandez Fierro. Ficava horas a ouvir aquela música
arrepiante e desesperada. No fim, “Chino”, o vocalista, fazia um peditório com
uma camisa “ensanguentada”, referencia aos desaparecidos na ditadura.
Do mesmo modo, desenhar pessoas a dançar tango
é também uma tarefa complicada. Por ser uma dança muito conhecida torna-se
difícil não entrar em posições estereotipadas. E era na Confiteria Ideal que
gostava de ouvir e ver dançar o tango. À noite descia a Avenida Corrientes,
atravessava a 9 de Julho, a mais larga do mundo, e entrava naquele antro
parecido como o nosso Ritz Club. Pedia um copo de vinho, puxava do caderno e da
caneta. E sentia-me em casa.
À espera no cais da Cidade da Praia
Quando viajei pelo arquipélago de Cabo Verde,
tentei, por vezes sem sucesso, fazer sempre as ligações entre as ilhas de
barco. Como é sempre dada primazia às mercadorias, só quando estas estão
arrumadas é que entram os passageiros. Assim, temos que estar muitas horas
antes no cais e esperar. Mas esse tempo transforma-se num convívio e, por
vezes, até numa festa. Estas três senhoras, no cais da Cidade da Praia, na ilha
de Santiago, enquanto aguardam pelo barco para São Filipe, na ilha do Fogo, não
perdem a oportunidade de ver o episódio da telenovela por uma escotilha. Ou, no
mesmo cais, noutro dia, à espera do barco para a Vila do Maio, na ilha do Maio,
um casal trocava piropos enquanto dava uma espécie de passos de dança.
Estes desenhos, frutos da observação, e que
exigem um esforço de compreensão, transportam-nos de uma forma única para as
nossas memórias.
Hugo Pratt em Veneza
Quando viajo gosto de levar pouca bagagem. O
material de desenho reduzo-o ao mínimo: caneta e caderno na rua, aguarela em
casa. Por vezes uso a tesoura e a cola para algo interessante que queira
acrescentar à página. Mas o mais complicado são os livros. Comprá-los é quase
proibido e não podemos levar muitos. Nesta viagem pelas costas de Espanha,
França e Itália decidi só levar um livro: As cidades Invisíveis de Italo
Calvino. E, quando estacionei em Veneza, vivi o que Marco Polo já tinha vivido
e que contou, disperso por muitas histórias, a Kublai Khan. Vi que afinal não
eram fantasias. Aquelas cidades existem. Outra personagem que me guiou por
Veneza foi Hugo Pratt e o seu amigo Corto Maltese. Também este mistura a realidade
com o sonho: “O sonho mais real é aquele mais distante da realidade, aquele que
voa, sem necessidade de velas nem de ventos”.
Fnaque em Marraquexe
Quando queremos desenhar pessoas, ou algo que
se movimenta, que nos passa rapidamente em frente dos olhos ou que está
constantemente a metamorfosear-se, é necessário uma grande concentração e
alguma dose de prática. As ruas da Medina de Marraquexe são caóticas, ou pelo
menos são-no para os ocidentais. Motoretas, burros (com ou sem carroça),
carros, camionetas, carneiros, além das pessoas, e tudo o que couber naquelas
ruas estreitas passam num ápice.
Encosto-me a uma esquina, observo e
concentro-me só em alguns aspectos: a motorizada, as mulheres que se aproximam,
uns lenços que estão pendurados numa porta, aquele arco em tijolo, uns homens
de djelaba e, inesperadamente, ao fundo, uma tabuleta de uma loja com o nome:
Fnaque.
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O JOÃO,
O BUGGY, O CADERNO, AS MOSCAS E O PRAZER QUE ISSO PODE DAR
(Texto
para o livro de João Catarino “EN2” de 2010)
Muita
gente gostava de fazer o que o João fez: agarrar no carro/casa, nas canetas e
caderno e no cão e zarpar por esse Portugal adentro. Este tipo de viagem
proporciona uma grande noção de liberdade e o caderno, como interlocutor
privilegiado, potencia esta sensação.
Parar quando lhe desse na gana ou o cão pedisse. Ou quando fosse solicitado por essa vontade inadiável [1]de
olhar para as coisas, observá-las, construir mentalmente uma imagem a partir do
que está diante dos olhos e registá-la no papel. Parece que as imagens passam
dos olhos diretamente para a mão. Mas não. Passam primeiro pelo cérebro. Este
acto de analisar, selecionar, sintetizar, decidir e, por fim, executar, tudo
feito num ápice, é um fenómeno que funciona de maneira diferente de pessoa para
pessoa e em que o João é exímio. Os seus desenhos, muito singulares, cuja
autoria é facilmente identificável, são um bom exemplo de como o Desenho é uma
disciplina intelectual.
O João
levou o Buggy, com certeza porque ele, o cão, precisava de férias e não porque
ele, o João, precisava de companhia. Apesar de a apreciar com certeza. Mas
companhia já a tinha, a do Diário Gráfico, esse caderno que serve para tudo o
que nós quisermos. Como, por exemplo, suporte de experimentação, chamando-o,
neste caso com toda a propriedade de “laboratório portátil”. Dando
oportunidade, em qualquer lado, de experimentar materiais, instrumentos
riscadores, maneiras de registo.
Neste
caso, nestes desenhos, as opções foram tomadas com antecedência e houve limites
voluntários nas cores e no material usado. Cada desenho tem um valor autónomo
mas, sobretudo, valem pelo conjunto de todo o caderno, o que é evidente neste
caso. É uma viagem e os desenhos são uma sequência, um desenrolar da viagem.
Mas cada desenho marca um acontecimento, um tempo. Não sei quantos desenhos o
João fez por dia, mas cada um memoriza não só o tempo que demorou a fazê-lo e a
cena objectiva que foi desenhada, mas também toda a circunstância (todo o
contexto): se estava rodeado de outras pessoas, se o que estava a ser observado
e desenhado era efémero ou estava estático, qual era temperatura que fazia ou
os cheiros que pairavam no ar, ou pequenas/grandes coisas, como por exemplo, se
havia moscas a perturbarem a sua concentração. Isto tudo pode não estar
traduzido no desenho, mas está com certeza gravado na cabeça do desenhador. E é
por isso que este livro ganha outra dimensão, quando os desenhos são
acompanhados por legendas, por pequenos comentários, contextualizando todos os
acontecimentos.
A
reflexão anterior talvez responda à pergunta, pertinente, e que muitos fazem:
“porque não a fotografia em vez do desenho?”. É tudo uma questão de tempo, de
ritmo, de usufruir as coisas de maneira diferente, de interiorizar as
experiências com outra intensidade. Muitos viajantes conjugam as duas maneiras
de registo: o desenho e a fotografia. Como também usam a escrita, quando
concluem que só a imagem não chega. Mas não se trata de fotografar para depois
desenhar em melhores condições. Porque, repito, não é importante o resultado, o
desenho final, mas sim toda a experiência que o acto de desenhar nos
proporciona.
As
moscas e o cão do João, o Buggy, podem ser factores de não concentração, estado
essencial para um desenho chegar a bom termo, mas isto tudo e sobretudo o
ultrapassar disto é que é gratificante.
10 de
Julho de 2010
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NÃO SOMOS DESENHADORES PERFEITOS
(Introdução para o catálogo da exposição
“Diários Gráficos em Almada. Não somos desenhadores perfeitos” no Museu da
Cidade de Almada. 2010)
Os autores dos desenhos dos cadernos expostos
não pretendem ser artistas. Se o são,
e alguns serão, não foi por isso que
participam nesta exposição. O serem muito bons
desenhadores, que o são, não foi também por
isso que estão aqui. Participam porque
têm um hábito: desenharem em cadernos de uma
maneira sistemática, diariamente,
diria mesmo, obsessivamente. Não é só quando
viajam ou quando têm disponibilidade.
Não é só quando vêem algo interessante, nem
quando querem reter para a posteridade
aqueles momentos. Não é só porque simplesmente
lhes pode dar prazer, ou porque lhes
vem uma ideia à cabeça e precisam de a
visualizar, ou porque é necessário “treinar
a mão” para desenharem melhor, ou precisam de
analisar um objecto, uma situação,
uma tarefa e pelo desenho conseguem-no melhor,
ou para, simplesmente, passar o
tempo. Ou seja, pode ser por todas as
situações descritas anteriormente, mas também
pode ser por nenhuma delas, nem por nada de
especial. Pode ser por, simplesmente,
estarem habituados a serem observadores e,
mentalmente, imaginarem que desenho
poderiam fazer. E, como têm o hábito de
transportarem o caderno, têm a oportunidade
de registarem essa ideia.
A maneira de expor os cadernos é em armários
com gavetas. Nada melhor a fim de
realçar o lado pessoal e íntimo desse objecto
que foi concebido, pela sua forma e
estrutura, para ser visto só pelo próprio e a
quem ele queira mostrar.
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(Texto para o catálogo como participante da
exposição “Diários Gráficos em Almada. Não somos desenhadores perfeitos” no
Museu da Cidade de Almada. 2010)
Por ser transportável e estar sempre
disponível para ser riscado, o Diário Gráfico tornou-se, para mim, num objecto
inseparável e imprescindível. É um objecto de uma utilidade extrema e
simultaneamente o mais inútil dos objectos.
Uma pergunta frequente e pertinente: “porque
não a fotografia em vez do desenho?”. É tudo uma questão de tempo, de ritmo, de
usufruir as coisas de maneira diferente, de interiorizar as experiências com
outra intensidade. Na verdade, muitos viajantes conjugam as duas maneiras de
registo, o desenho e a fotografia (como também usam a escrita, quando concluem
que só a imagem não chega), mas não se trata de fotografar para depois desenhar
em melhores condições, porque não é importante o resultado, o desenho final,
mas sim toda a experiência que o acto de desenhar nos proporciona.
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“DIÁRIOS
GRÁFICOS. DESENHO EM CADERNOS”
(Texto
escrito para o catálogo da exposição ”Diários Gráficos. Desenho em Cadernos” no
Centro Cultural de Lagos. 2009)
Esta exposição é constituída por desenhos,
anotações escritas, esquemas, colagens ou outro tipo de técnicas, que têm a
particularidade de serem executados em cadernos. Por este facto, de o suporte
ser um caderno e de dimensões transportáveis, pressupõe que seja o resultado de
um percurso, de um conjunto de experiências ou de situações que aconteceram ao
longo de um tempo determinado – de uma viagem, mesmo sendo esta entendida
unicamente como tempo de disponibilidade. O que faz com que a importância de
cada desenho dependa da série, ou do caderno, onde está integrado.
A ideia de Diário também influi no tipo de
registo. É uma intervenção regular, dia após dia, que traduz um determinado
tempo da vida do autor. E, por ser um caderno, permite voltar atrás, refazer
alguma página, emendar algum pormenor, acrescentar-lhe alguma informação, colar
algo. É uma espécie de palimpsesto, um produto sempre inacabado.
Estes cadernos, por serem objectos íntimos,
para uso próprio, adquirem facilmente um grande valor por vários motivos: ou
porque servem como retenção da memória de momentos que terão algum significado
para o próprio; ou para usufruir o puro prazer de desenhar; ou como campo de
liberdade para experimentação ou de materiais ou de modo de registo; ou como
visualização e desenvolvimento de uma ideia; ou como uma companhia e para
passar o tempo; ou ainda tantos outros motivos.
Esta exposição tem algo de paradoxal, visto
que os Diários são, por definição, objectos para guardar, coisas íntimas só
para serem vistos pelo próprio ou por quem ele queira que os veja. No entanto,
para salvaguardar a privacidade, as páginas mostradas são seleccionadas pelos
comissários com o consentimento dos próprios autores.
Está organizada em três Núcleos:
Núcleo 1: Diários de Desenhadores
quotidianos
Núcleo 2: Diários de
Viajantes/Investigadores e de Desenhadores científicos
Núcleo 3: Cadernos de trabalho e Livros de
Artista
Os autores que apresentamos têm o hábito de
desenhar em cadernos, em viagem ou no quotidiano. Termos o hábito de
transportar um caderno transforma-nos em pessoas mais observadoras e com desejo
e gosto de registar graficamente o que observamos.
O
quotidiano transforma-se em viagem. Nos locais por onde passamos
quotidianamente o olhar tem ainda que estar mais atento e apercebemo-nos de
pormenores, ou pontos de vista, ou estórias banais, que normalmente nos
passariam despercebidas.
Os materiais, pelas condições de trabalho,
no exterior, geralmente precárias, são os estritamente necessários, sendo, no
entanto, de variedade infinita. O método usado também varia, indo do desenho
esboçado no local e finalizado comodamente mais tarde, até ao desenho
definitivo feito in loco. A escrita é
um bom auxiliar quando não há condições para se desenhar ou quando este não
chega para registar o que queremos. Do mesmo modo, podemos usar colagens de
qualquer tipo de material, incluindo fotografias.
Estes desenhadores, muitas vezes, desenham
sem objectivo à vista. Mas, garantidamente, cada vez desenham melhor.
Núcleo
2: Diários de Viajantes/Investigadores e de Desenhadores científicos
O desenho teve sempre um papel fundamenta na
investigação científica e difusão das ciências. Podemos referir a Biologia, a
Geologia, ou a Etnografia, a Antropologia ou mesmo a Sociologia. Mesmo com os
avanços tecnológicos de registo de imagens, como a fotografia e o vídeo, o
desenho continua a ser imprescindível na recolha de informação e na
investigação científica.
Para além dos usos estritamente
profissionais há, nos cadernos de “cientistas” e desenhadores científicos,
pausas saudáveis nos rigores dos cânones de escrita e ilustração académicos. Os
desenhos e anotações em cadernos são lugares de experimentação onde é possível
registar observações pessoais, hesitações, reflexões intuídas ou fragmentárias.
Neles, sequências de desenhos de insectos tomam a forma de bestiários
fantásticos ou, das impressões de terreno de um antropólogo, surgem narrativas
de viagem que as convenções da disciplina tendem a marginalizar. O hábito de
desenhar permite a investigadores e ilustradores científicos estarem
conscientes das dimensões criativas das suas práticas profissionais, melhor do
que a fotografia ou o vídeo, presumidamente registos mais próximos da
realidade, apenas porque é mais forte a ilusão de serem menos vulneráveis à mediação
das subjectividades do olhar.
Núcleo
3: Cadernos de trabalho e Livros de Artista
O caderno foi sempre um suporte usado por
artistas, arquitectos e por todas as actividades que requeiram reflexão e
criatividade na concepção das ideias. Elas, as ideias, surgem quando menos se
esperam e o caderno, como objecto transportável, é o suporte privilegiado. Este
espaço, pela sua especificidade, é um espaço de libertação, de experiência,
onde se pode errar, onde se testam várias hipóteses.
Enquanto o Diário Gráfico está ligado à
ideia de percurso, de viagem, de informações vindas do exterior, com uma forte
carga intimista, que não é mostrado ou só o é a quem o autor quiser, o Livro de
Artista, cuja execução mantém o cunho intimista na sua execução, é considerado
um objecto plástico quando virado para o exterior, para o observador anónimo.
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(Texto escrito, como autor, para o livro
“Diários de Viagem. Desenhos do quotidiano” 2008)
Não consigo dissociar viajar com desenhar. Esta
estreita relação traz-me inúmeras vantagens. Quando viajo sou impelido a
desenhar, o que faz com que fique com imensas memórias e as minhas viagens se
transformem em pilhas de cadernos que posso reviver sempre que quero. O desenho
adquire um valor precioso por ser um pretexto de aproximação transformando-se
num bom meio de comunicação.
Sem entrar pela velha discussão (estéril) do
viajante e do turista, sempre que posso viajo como viajante, ou seja, com
tempo, com disponibilidade, sem percurso definido, a deambular conforme me dá
na gana. Apesar dos meus registos, feitos sempre a caneta, serem rápidos e
realizados geralmente em más condições, é fundamental termos disponibilidade
mental para sermos curiosos, observadores e conseguirmos ser surpreendidos.
Normalmente ando com canetas de várias espessuras e uso-as conforme a escala do
que quero representar. De princípio, ainda o caderno é novo, os registos saem
bastante incipientes e sem graça, mas depois as pessoas começam a ficar mais
expressivas, mais dinâmicas e os objectos ganham espessura.
Também por querer passar o mais possível
despercebido, tento andar sem nada nas mãos e tudo o que tenho de transportar
levo nos bolsos. O bloco e as canetas. As cores, aguarelas, aplico-as depois à
noite no hotel, ou onde estiver alojado. Permite-me relembrar o dia, escrever
alguma coisa que acho que devia ser lembrada, colar algum bilhete ou outra
coisa do género. Por vezes desenho de memória, especialmente paisagens, onde
relembro as cores, o tipo de relevo, a disposição dos vários elementos e a
representação fica um misto de todas as paisagens daquele dia. As coisas
escritas nem sempre estão relacionadas com as imagens e, por vezes, reportam-se
a acontecimentos que nem sequer registei. O mesmo se passa com as colagens.
O desenho ao fazer-me ter a sensação que
viajo, faz com que possa viajar na minha própria cidade, no meu dia-a-dia.
Sinto-me estrangeiro no quotidiano. Paradoxalmente, tento adquirir rotinas no
estrangeiro e fugir a elas no meu país. Ao registar espaços, pormenores,
pessoas por onde passo todos os dias, passo a ver as coisas de outro modo. O
Diário de Viagem passa a ser o Diário Gráfico do dia-a-dia, passe a
redundância.
Por vezes gosto de me impor, talvez por
defeito profissional de professor, alguns desafios. Sentar-me numa praça, ou
noutro local qualquer, onde pessoas passam e demoram um determinado tempo no
meu raio visual, observá-las e desenhá-las no seu percurso. Se não conseguir
completamente posso imaginar o resto. Do mesmo modo, representar as pessoas no
Metro. Além da mesma limitação de tempo, existe a turbulência própria do
transporte e o pudor perante as pessoas que tento representar, o que obriga a
uma certa dissimulação.
O espaço das cidades que mais aprecio são as
praças. São os locais onde me sinto melhor, estejam elas a abarrotar de gente
ou totalmente vazias, tendo belezas diferentes e diferentes os estados de
espírito que provocam. E desenhá-las é fascinante e um grande desafio.
Cadernos de capa dura preta com cantos e lombada de
pano creme. 50 folhas. 11,2x16,8 cm
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